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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

René Descartes (1596 – 1650) Vida e Obra

René Descartes [1]

VII) Ulm, Alemanha. O jovem francês se encontra engajado nas tropas do Duque Maximiliano da Baviera. É dia 10 de novembro de 1619, o dia da epifania cartesiana. Descartes desvela os fundamentos de uma "ciência admirável, capaz de unificar o conhecimento humano a partir de bases seguras, feita de certezas racionais".

"Ficava todo o dia fechado sozinho num cômodo aquecido por uma estufa, onde dispunha de todo o tempo para me entreter com meus pensamentos" (Discurso do Método).

Concepção unitária - Um engenheiro, um único espírito atento às exigências da razão. Um desses pensamentos perquiria o artífice e sua obra: como "as construções começadas e concluídas por um único arquiteto são geralmente mais belas e mais bem ordenadas que aquelas que vários esforçam-se por reformar, servindo-se de velhas muralhas que haviam sido construídas para outros fins".


VIII) Século XVI, época marcada pela paixão pelas descobertas e concepções opostas às que prevaleceram na idade média. Nova geografia do mundo (outros povos, outras verdades) e renascimento da antiguidade greco-romana; abalo na unidade política e religiosa da Europa (movimento da Reforma). Tudo isso estimulava à reflexão e a dúvida.

Ceticismo - Pensadores que expressaram o clima de ceticismo da época: Agripa de Nettesheim (1487-1535), incerteza das ciências; Francisco Sanches (1552-1632), a dúvida como recurso metodológico; Michel de Montaigne (1533-1592), renúncia à certeza aparentemente inatingível; Pierre Charron (1541-1603) extrai do ceticismo sua defesa da fé;

A Via - hódos, do grego: o método. Duas vias:
1. A via empirista, Francis Bacon (1561-1626), ciência se faz pela observação e experimentação, leis indutivas, casos particulares para se chegar a generalizações;
2. A via da razão, exemplificada pelas matemáticas.

IX) Os Descartes eram uma família de burgueses dedicados ao comércio e à medicina. Unidos a outras famílias, tornaram-se proprietários de terras. Nasce em 1596. Em 1606, começam seus estudos no colégio jesuíta de La Flėche. A base de leitura era o lectio, leitura e explicação de textos antigos, e a erudição (grego, latim, história e fábulas); num segundo estágio, eloquência, poesia e filosofia e, finalmente, filosofia (lógica, física, metafísica e moral), e suas aplicações, medicina e jurisprudência. Sob fortes tradições conservadoras, Descartes conviveu com uma mentalidade imbuída de religiosidade e de submissão às instituições monárquicas. A partir de 1624, o Cardeal Richelieu (1585 – 1642) tomava as diretrizes da política na França (na sequência: Henrique IV (1553 – 1610), Luís XIII (1601 – 1643), e Richelieu). Floresceu a burguesia, multiplicavam-se as manufaturas e os engenhos mecânicos.

XI) A Matemática -  "Desencantado com a instabilidade e a inutilidade prática das letras", ingressa na carreira militar e serve sob o comando de Maurício de Nassau (1604 - 1679). A matemática o atraía com as certezas de seus encadeamentos e as sólidas evidências de suas razões. Mas também logo lhe pareceu básica para um campo limitado de aplicações (da mecânica) e, apesar da grande riqueza racional, elas nada ofereciam de fundamental para os problemas da vida. Ainda assim, acreditava que poderia haver um acordo entre as leis matemáticas e as leis da natureza, atualizando "o antigo ideal Pitagórico de desvelar a teia numérica que constitui a alma do mundo". Em 1619 ingressa na confraria Rosa Cruz (caracterizada por uma mística racional).

XIII) O filósofo mascarado. Sua obra Traité du Monde et de la Lumière tem a publicação suspensa quando Descartes fica sabendo da condenação de Galileu (1564 – 1642), motivada pela tese do movimento da terra, a qual também havia aderido. Descartes parece se exprimir intencionalmente de forma ambígua, evitando assim represálias da igreja. Mas tarde volta a publicar alguns tratados em francês, a língua vulgar, uma novidade numa época ainda marcada pela latinização unificadora da cultura herdada dos medievais. 
Em 1641, publica Méditations sur la Philosophie Prémière, objetada por Hobbes (1588 – 1679), e outros filósofos da época. Em 1649, publica Traité des Passions. Em 1650, com pneumonia, vem a falecer em Estocolmo onde esteve a convite da Rainha Cristina da Suécia.

O essencialismo cartesiano: "Nos Princípios da Filosofia Descartes compara a sabedoria a uma árvore que estaria presa ao domínio do ser, à realidade, por meio de suas raízes metafísicas". "O tronco da física sustenta-se em raízes metafísicas". A seiva circula como uma essência que permanece. Em Meditações V, Descartes reformula o argumento ontológico que pretende afirmar a existência de Deus a partir da ideia de Deus (Ser perfeitíssimo). Sendo assim, sua existência entendida como pura perfeição, implica que há uma essência que permanece (um Bem), enquanto transpassamos por diferentes graus de perfeição.

XIV) A reformulação do conhecimento: Descartes busca unificar, com auxílio do instrumental matemático, o vasto campo dos conhecimentos ainda dispersos em frágeis construções isoladas. Para tanto se torna necessário dirimir as dúvidas que perpassam o universo cultural de sua época. E assim, se dispõe a duvidar metodicamente de tudo. Percebe que (1.) as certezas com relação aos objetos físicos são instáveis e obscuras; (2.) as certezas matemáticas lhes parecem nítidas e estáveis; concebidas por todos, independentemente das experiências dos sentidos (individuais e mutáveis) de cada sujeito isolado, "constituindo o substrato inato da pensée".

O método: concebido a partir desse ideal matemático, universal, como uma cadeia de razões, intuídas com clareza de evidências, interligadas com a coerência perfeita das demonstrações - aplicadas a qualquer objeto - forjaria a tessitura de ideias claras e precisas, da verdadeira sabedoria. As ideias se impõem com força de evidência. Ainda que subjetivas, se apresentam como algo real.

A dúvida hiperbólica: a dúvida ampliada ao máximo (até mesmo das ideias ‘claras e distintas’).

Le malin génie (o gênio maligno): este aparece como uma alegoria que se refere ao real valor dos conhecimentos científicos. Na consciência subjetiva do homem, a ciência aparece como uma representação e nada garante que ela possua um correspondente no mundo objetivo. A hipótese desse gênio maligno deixa pairar sobre o universo científico a possibilidade de que este seja apenas uma ficção, "um sonho", muito bem concatenado.

XV) O cogito: a dúvida é estendida à sua máxima dimensão (hiperbólica), para os diferentes níveis a qual é aplicada - "das ideias obscuras provenientes de impressões sensíveis às ideias claras universais". A dúvida permite extrair certo núcleo de "certeza", que cresce à medida que se repetem os questionamentos próprios à sua elaboração, reforça-se na experiência daquele que duvida, o que resulta numa maior clareza naquilo que se torna evidente. 

O projeto cartesiano: Em "Geometria" (1637), Descartes afirma: "em matéria de progressões matemáticas, quando se tem os dois ou três primeiros termos, não é difícil encontrar os outros". "Essa ideia de uma ordem natural, inerente à progressão do conhecimento, é fundamental para o projeto cartesiano de construir uma "matemática" universal". Baseia-se numa cadeia de razões que conduz o termo desconhecido (um termo relativo a outros termos), para que seja descoberto.

Os preceitos para o termo verdadeiro: o preceito metodológico básico apontado por Descartes é que, por nos encontrarmos diante de uma ciência representativa, será preciso que o termo verdadeiro seja aquele considerado evidente, intuído com clareza e precisão.

Os preceitos metodológicos complementares: além do preceito básico, permeável pela evidência, Descartes aponta três outros preceitos metodológico complementares ou preparatórios:

1. o preceito da análise (dividir cada uma das dificuldades em partes para serem resolvidas);
2. o preceito da síntese (conduzir com ordem o pensamento, partindo do simples, gradativamente, para o mais complexo);
3. o preceito da enumeração (enumerar para que nada seja omitido).

Sob estes três ou quatro imperativos da razão, Descartes aponta que para que haja objetividade no conhecimento científico, será igualmente necessário a máxima exacerbação da dúvida (hiperbólica). A máxima incerteza aponta para a primeira certeza: "se duvido, penso". Um primeiro elo na cadeia de razões. A dinâmica inerente às séries de termo dispostos racionalmente (como as progressões matemáticas) leva à inevitável explicitação do cogito, ergo sum (penso, logo sou). A princípio, o eu dependente do pensamento.

O duplo sentido:
1. O paradigma da evidência plena: as intuições deverão suceder-se numa visão clara da realidade, tudo que for afirmado deverá conter a mesma certeza de "penso, logo sou";
2. No plano metafísico, o cogito, representa a ponte que separa o abismo entre a subjetividade e a objetividade, o encontro, pelo pensamento (res cogitans), de algo que subsiste, de uma substância (res extensa).

Partindo do já conquistado, da certeza do cogito, do 'eu' enquanto ser pensante, "Descartes procura provar a existência de Deus, garantia última de qualquer subsistência e, portanto, fundamento absoluto da objetividade".

XVI) A sugestão platônica reaproveitada por Santo Agostinho: o fundamento da realidade é bom, conhecer é um bem, o conhecer científico, epistêmico, pode corresponder ao ser (o que é), ao sumo Bem. O Sol torna os objetos inteligíveis, os sujeitos capazes de intelecção, a ciência uma construção clara sobre a realidade.

Meditações III - Descartes "prova" a existência de Deus. Principio da causalidade. A causa (um deus infinito e perfeito), explica o efeito (o homem finito e imperfeito, porém dotado da ideia de infinitude e perfeição).

Meditações V - O argumento ontológico. A relação entre duas substâncias: a ens infinita (Deus) e a res cogitans (o pensamento). Segundo Descartes, só a existência de Deus, perfeitíssimo, justificaria a ideia inata de Deus na mente humana, e conclui afirmando que só a existência de um bom Deus é o que não nos permite o erro sistemático do espírito humano, o que justifica o otimismo científico e crença na razão. A evidência se torna critério de verdade: "às ideias claras correspondem de fato às realidades".  "Deus cartesiano é, assim, a garantia da objetividade do conhecimento científico".  O máximo de clareza subjetiva corresponde o cerne da objetividade.

XVII) Meditações VI - o mundo físico, representado por ideias obscuras, originadas de impressões sensíveis. Nele, os preceitos metodológicos da evidência não são aplicáveis. Sua existência deve ser "comprovada através de etapas sucessivas, numa forma de argumentação por aproximações que representam um crescer de certezas (o mundo exterior primeiramente é possível; se torna provável a medida que avançam os argumentos e, finalmente, certo).

 "Deus serve de apoio para retirar do domínio da dúvida o conhecimento relativo aos corpos".

A onipotência divina sustenta a base da existência do mundo físico. Ele é criação de um ser que tudo pode. Há no pensamento uma ideia clara referente ao mundo físico, a res extensa (de extensão); "ideia de algo dotado de grandeza e forma", mas não que haja uma realidade extensa, mais porque Deus existe como garantia dessa objetividade. 

Deus (ens infinita) a ponte entre duas certezas: da certeza da existência do pensamento (res cogitans), para a certeza da existência do mundo físico (res extensa). Eu penso e tenho um corpo (corpo/alma).

XVII) Deus garante o conhecimento científico a partir de ideias claras e precisas. A física cartesiana resulta de construções abstratas regidas pela razão.

Um mundo como extensão, essência da corporeidade. O mundo físico, finito e pleno. Sua matéria seria dividida em partículas perfeitamente contínuas, não existiria o vazio. Partículas de matéria a mover-se retilineamente (princípio de inércia), numa situação ideal, de pura racionalidade.

XIX) Tradição platônica: Descartes concebe o mundo físico como "deformado de um modelo ideal de universo, apenas alcançável pelo puro intelecto".

Julgamento de Galileu - Processo da Inquisição.

Moral provisória: "a arte de ser feliz". A pretensão de criar um 'matemática universal' está contida no ideal de uma sabedoria guiada pela razão, porém, "a urgência da ação demanda a aceitação de imposições puramente factuais", e diante das dúvidas que possam persistir nos julgamentos que se façam das coisas, se recomenda uma moral de conformismo social e obediência às leis. Aqui vale lembrar a sugestão de prudência, a qual se submeteu o filósofo, diante das aflições de seus contemporâneos Giordano Bruno (1548 – 1600) e Galileu Galilei (1564 – 1642).

CONTINUA:
René Descartes, Meditação I
René Descartes, Meditação II
René Descartes, Meditação III



[1] Descartes, René (1596-1650). Meditações; introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gérard Lebrun; Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Junior. - 3. Ed. - São Paulo : Abril Cultural, 1983 Os Pensadores.

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