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quarta-feira, 28 de maio de 2014

Boécio – Segundo comentário à Isagoge de Porfírio.


Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (Boethius, Roma ca. 480 — Pavia, 525), foi um filósofo, estadista e teólogo romano que se notabilizou pela sua tradução e comentário do Isagoge de Porfírio, obra que se transformou num dos textos mais influentes da Filosofia medieval europeia. Sendo senador de Roma, foi ele próprio acusado de traição a favor do Império Bizantino e de magia, sendo subsequentemente torturado, condenado à morte e executado. Membro de uma família ligada ao então nascente cristianismo, é considerado pela Igreja Católica Romana, pelo seu contributo para a teologia cristã e pelos serviços que prestou aos cristãos, um mártir e um dos padres da Igreja. (Wikipédia)

Boécio (480 / 525 d.C.) – Segundo comentário à Isagoge de Porfírio.

Texto de Porfírio no que concerne aos gêneros e espécies:

Gênero e espécies existem e subsistem ou são apenas formados pelo entendimento, e pelo pensamento?

1.     Se eles existem ou estão apenas no intelecto;
2.     Posto que subsistem, são corpóreos ou incorpóreos;
3.     Sendo um ou outro:

- separados dos sensíveis, subsistentes incorporais sobre e acima dos corpos. Podem existir separados dos corpos a exemplo de Deus, mente e alma (supra-sensíveis, realismo platônico); ou

- postos nos sensíveis, em conexão com os corpos e de acordo com estes, pois não podem existir separados dos corpos, ainda que considerados incorpóreos, não se encontram na forma de três dimensões (comprimento, largura e profundidade), a exemplo da linha, a superfície, os números (realismo aristotélico).

Segundo Boécio, "tudo que existe necessariamente ou é corpóreo ou incorpóreo, gêneros e espécies deverão estar em um destes grupos".

A mente (animus) e o tipo de entendimento dos gêneros e dos outros predicáveis.

1. (Realismo) A mente entende, concebe intelectualmente o que existe constituído na natureza das coisas e o descreve para si pela razão, das quais tiramos um entendimento verdadeiro. Para Boécio os universais subsistem em potência nos sensíveis para serem absorvidos no intelecto, ou seja, existem do mesmo modo que são apreendidos (argumento "pró-universais" de Boécio); ou

2. (Ficção) A mente imagina o que não existe e denomina. Os universais são meros termos mentais. Eles não existem independente do pensamento. Existem pela necessidade de agrupar para conhecer propriedades gerais (argumento nominalista).

Os argumentos contras os universais: gêneros e espécies não podem existir devido a própria inconsistência dos universais.

1.    Tudo que é comum a várias coisas ao mesmo tempo não pode ser um. Se um gênero é um em número, não pode ser todo e ao mesmo tempo comum a muitos. 

2.     O que é comum é 'dito' de muitos, especialmente quando uma e a mesma coisa está como um todo em muitas coisas ao mesmo tempo. Seu gênero seria um em todas elas. Mas não é o caso que as espécies tenham todo o gênero ao mesmo tempo (aspecto + temporalidade). Nelas, guarda-se a diferença (espécie = gênero + diferença). Eis porque o gênero não pode estar colocado como um em vários singulares ao mesmo tempoNão pode ser o caso que seja completo em várias coisas ao mesmo tempo e, em si mesmo, seja numericamente uno.

3.      Mas se isto for assim, então o gênero não pode ser um. Portanto, não é absolutamente nada. O que existe, existe pela razão de que é um. Da multiplicidade não é possível um conhecimento genérico. As espécies não repartem o gênero. Todas as espécies possuem o gênero inteiro (bananeira, coqueiro, pinheiro). Se diz que é comum pelas partes de forma integral (um árvore = raiz, tronco, folhas...), suas partes pertencem a coisas singulares. O todo não é comum.

4.    E ainda que existam os universais e que sejam múltiplos e não numericamente uno, pois guardam apenas certas semelhanças, mas não são uma mesma coisa, não haverá nenhum gênero último, haverá sim outro gênero colocado logo acima. Pois, mesmo que vários animais tenham certa similaridade, não são uma mesma coisa, e por esta razão seus gêneros serão investigados. Um gênero que esteja em várias coisas, sendo consequentemente múltiplo, tem uma semelhança com o que é um gênero. Mas essa semelhança não é una porque está em várias coisas. Logo, um outro gênero deste gênero deve ser investigado: um terceiro gênero deverá ser encontrado e, assim, infinitamente, sem nunca alcançarmos um gênero supremo (o argumento do gênero supremo segue-se da admissão de que o universal seja múltiplo, sem unidade, donde não pode haver unidade, gênero supremo).

Logo, o gênero não existe para aqueles que argumentam contra os universais porque:

1. Não é um porque é comum a vários;

2. Não é muitos porque um outro gênero deverá ser procurado para representar essa multiplicidade (terceiro gênero, sem nunca alcançarmos o gênero supremo).

O entendimento da "coisa comum":

1. Comum pelas partes. Suas partes pertencem a coisas singulares (integral). O todo não é comum (raiz, tronco, folhas, fruto... = árvore);

2. Comum a um e outro, ao longo do tempo. É transmitido pelo uso daqueles que o possuem de modo que é comum a um e outro, como um escravo/cavalo;

3. Comum ao mesmo tempo a todos (comum em relação). (palco / espetáculo, comum a todos os espetadores).

Os gêneros não podem ser comum às suas espécies em nenhum desses modos. Pois se supõe ser comum de tal modo, que tanto o todo dele esteja em todos os seus singulares e simultaneamente, quanto possa constituir e formar, em si mesmo, a substância daquilo que é comum e numericamente uno.

O argumento "pró" universais

Os universais são apreendidos apenas pelo intelecto e o intelecto surge a partir de uma "coisa-sujeito', a coisa disposta (no ato). Logo, o entendimento dos universais é tomado a partir da coisa/sujeito que existe na realidade. A coisa entendida é disposta, a coisa então existe na realidade. O argumento "pró" admite que os universais existem do mesmo modo que são apreendidos.

O entendimento do gênero tomado a partir da coisa disposta:

Por Composição ou Abstração (Alexandre de Aphodisias - II / III d.C.)

A opinião falsa surge por composição (quando se põe e se junta aquilo que a natureza não permite estar junto: Cavalo + Homem = Centauro).

A opinião verdadeira surge da divisão por abstração. Há vários tipos de coisas que tem seu ser em outros, os quais só podem ser separados pela mente (ex.: a linha, algo que subsiste no corpo). A mente pode tanto unir o que está separado, quanto desunir o que o que está unido. A mente visa e considera a natureza incorporal por si mesma e separada dos corpos nos quais é tornada concreta.

Os universais (seus predicados = gênero, espécie, diferença e próprio) são encontrados em coisas incorporais e corporais

1.     Nas coisas incorporais manifesta uma compreensão incorporal do gênero;

2.     Nas coisas corporais, remove a natureza daqueles incorporais dos corpos. Os sentidos entrega-nos, de modo confuso, junto com os corpos, todas as coisas incorporais (como a linha, a superfície), que tem seu ser nos próprios corpos e os visa e os considera como se fosse uma forma em si mesma; ou seja, nos corporais, eles são entendidos separados dos sensíveis, de modo que sua natureza possa ser visada e sua peculiaridade distintiva compreendida. 

Para Boécio

Quando gênero e espécies são pensados, sua semelhança é apreendida das coisas singulares nas quais existem (semelhança substancial dos indivíduos que são dessemelhantes numericamente). Ex.: de homens singulares, dessemelhantes entre si, a semelhança da humanidade é apreendida, a espécie.

Espécie = semelhança de coisas individuais;
Gênero = semelhança de espécies.

E assim as coisas existem nos singulares, mas são pensadas como universais. A espécie deve ser considerada como um pensamento apreendido da semelhança substancial dos indivíduos que são dessemelhantes numericamente. O gênero é o pensamento apreendido da semelhança das espécies. Esta semelhança torna-se sensível quando existe nos singulares, e tornar-se inteligível quando está nos universais. Subsistem no reino dos sensíveis, mas são entendidos separados dos corpos.

Resumindo:


1.     Gênero e espécie subsistem de um modo e são entendidas de outro.
2.     São incorporais, entendidos como separados dos corpos, mais subsistem nos sensíveis, unidos aos sensíveis.
- Platão (realismo exagerado): universais que existem e subsistem separados dos corpos
- Aristóteles (realismo moderado): universais que subsistem nos corpos.

VEJA TAMBÉMPorfírio de Tiro - Isagoge

* Leituras recomendadas:

- Aristóteles: Metafísica. Editora Globo;
- ________: Organon;
- Santos, Bento Silva: A imortalidade da alma no Fédon de Platão, coerência e legitimidade do argumento final. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1999;
- Junior, Paulo leite: O problema dos universais, a perspectiva de Boécio, Abelardo e Ockham, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001;
Platão: Teeto (relação entre a natureza e o conhecimento, teoria da percepção);
- _____: Crátilo (relação entre as coisas e as palavras, teoria da cognição);
- _____: Timeu (o demiurgo, a natureza do mundo físico e do mundo eterno);
- _____: Fédon (a imortalidade da alma);
Porfírio de Tiro - Isagoge, introdução às categorias de Aristóteles; trad. Bento S. Santos, São Paulo; Attar Editorial, 2002;
- Reale, G: História da filosofia antiga: A era imperial. São Paulo, Loyola;
- Schuback, Maria Sá Cavalcante: Para ler os medievais; Ensaio de Hermenêutica Imaginativa. Ed Vozes.                

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